terça-feira, 8 de março de 2011

Faz favor, menina

(Público, 8/3: Maria José Casanova, I.Educ. Univ. Minho)

[Nota do prof: Este artigo chama a atenção para o aspecto de a linguagem nunca ser inocente. Gostava que tentassem, como exercício, identificar os pontos principais do texto.]

Numa perspectiva de compreensão sociológica da realidade social, devo confessar que não gosto de "Dias de". Os "Dias de" remetem para a evidência de um tratamento socialmente hierarquizado, discriminatório, de grupos considerados minoritários porque socialmente destituídos de diferentes tipos e montantes de poder (seja o dia da mulher, do deficiente, do cigano, etc.). Remetem portanto para categorias sociais normalmente (e normativamente) invisibilizadas nas relações do quotidiano pela ausência de poder socialmente considerado: os não-cidadãos ou os súbditos (de sub-dito). A sociedade fica assim de consciência tranquila porque, numa atitude paternalista, por um dia outorga atenção a categorias sociais estruturalmente subalternizadas, diminuídas no seu estatuto de cidadãs ou cidadãos.

É o que acontece com o "Dia Internacional da Mulher", cuja "comemoração" ocorre hoje. Sendo as mulheres mais de 50% da população mundial, desempenhando, tal como os homens, um papel fundamental na reprodução social das sociedades, na estruturação familiar e no mercado de trabalho, considerá-las um grupo minoritário (mais uma vez: pela ausência de poder socialmente considerado) significa a assunção da sua subalternidade num mundo construído e ordenado segundo categorias sociais masculinas.

Incontornavelmente mais importante do que qualquer institucionalização de "Dias de", é institucionalizar práticas democráticas, construtoras de relações de sociabilidade, familiares e de trabalho não-hierarquizadas; do tratamento de cada um de acordo com a dignidade que todo o ser humano, por princípio, merece.

Um exemplo desta ausência de institucionalização de práticas democráticas é o tratamento linguístico de que uma parte das mulheres é estruturalmente alvo por parte da sociedade (neste caso, portuguesa) e que consiste no tratamento de "menina" com que são frequentemente "presenteadas" nos mais diversos contextos de interacção social. Normalmente recorro à ironia em situações desta natureza (que bom/que interessante..., ainda sou considerada menina...), que não raras vezes faz os meus interlocutores ou interlocutoras olharem-me entre a perplexidade e a estranheza...

Esta forma de linguagem remete a mulher para um estatuto de menoridade, retirando-lhe a adultez e outorgando-lhe um estado permanente de infantilidade ao qual se associa a necessidade de serem constantemente cuidadas e agidas pelo género masculino.

Não deixa de ser interessante neste processo de construção social a adesão das próprias mulheres a esta forma de dominação através da atribuição de um sentido positivo à expressão. O tratamento de "menina" aparece associado não a uma subalternidade de género, perpetuando relações de dominação, mas à assunção da sua juvenilidade. Ser tratada por "menina" significa ser percepcionada como pertencendo ainda à categoria social de juventude, independentemente de esse tratamento ser outorgado a uma mulher de 20, 30 ou 50 anos..., perpetuando assim as mulheres formas de dominação masculina que aparecem naturalizadas (incorporadas por homens e mulheres) porque socialmente instituídas.

Esta espécie de "violência simbólica" sobre as mulheres é eficaz dada precisamente a adesão das "dominadas" a este processo de dominação (reconhecimento da validade de) e do desconhecimento das relações de poder que estão na sua base. À semelhança de Pierre Bourdieu (1999), considero que a dominação masculina se perpetua porque as mulheres (e os homens) incorporam, "sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e avaliação, as estruturas históricas da ordem masculina", recorrendo, "para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produtos da dominação". Mas considero também que, sendo as mulheres agentes dotados de capacidade reflexiva sobre os contextos e os processos de interacção, são capazes de construir práticas contra-hegemónicas de desnaturalização destas (e de outras) assimetrias homem-mulher.

No caso em apreço, basta pensar que o mesmo tratamento não é outorgado ao género masculino, a não ser em situações que ocorrem na esfera doméstica, em que a expressão "menino" aparece associada a um tratamento de deferência da empregada em relação ao filho do empregador ou empregadora, o mesmo acontecendo, neste contexto, com o género feminino.

A que formas de rebelião social não assistiríamos se esta forma de linguagem fosse outorgada ao género masculino? Não um tratamento jocoso ou circunstancial, mas um tratamento perene, naturalizado. Pois é de uma rebelião social (mesmo que silenciosa) que necessitamos, protagonizada pelas mulheres nas suas relações do quotidiano: dizer não a esta e outras formas de tratamento subalternizado (materializado através do comportamento, da linguagem verbal ou da linguagem corporal) exigindo dignidade e paridade nos mais diversos contextos e processos de interacção social.

É importante não esquecer que todas as relações sociais são construídas enquanto relações de poder. E o poder exercido sobre o outro será tanto maior ou menor em função do grau de consciencialização acerca da existência do exercício desse poder e na medida em que nos percepcionamos (ou não) como mais dependentes desse outro do que esse outro de nós.

É através das relações do quotidiano que estas (e outras) formas de subalternidade estrutural se perpetuam, já que as mentalidades se constituem numa das formas mais consistentes de dominação estrutural socialmente existentes.

Mas uma vez que o Dia Internacional da Mulher existe e está aí, por que não aproveitá-lo para iniciar este processo de rebelião social dizendo "não" a formas subalternas (e/ou delegadas) de exercício da cidadania? Instituto de Educação da Universidade do Minho ( mjcasanova@ie.uminho.pt )

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