segunda-feira, 28 de março de 2011

"Atacar"/"Criticar" & outras questões de linguagem

http://www.youtube.com/watch?v=wZLaLO-tTJU&NR=1

E para quando um artigo neste blogue postado por alunos?

Hum?

Manuais de História ainda contam o mundo à moda do Estado Novo

Clara Viana, Público 28/3
Os manuais de História do 3º ciclo do ensino básico continuam a perpetuar "muitos dos discursos do Estado Novo". São apresentados de um modo "mais subtil e suavizado", mas constituem "um corpo ideológico" que continua a condicionar o modo como se fala do racismo, do nacionalismo e da "história dos outros". As constatações são da investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Marta Araújo e têm como base uma análise dos cinco manuais de História mais vendidos, em 2008/2009, no 7º, 8º e 9º anos de escolaridade.

Esta análise constituiu o ponto de partida para a investigação Raça e África em Portugal, que Marta Araújo lidera no CES. No âmbito deste projecto, que ficará concluído em Agosto, estão a ser realizadas também entrevistas a historiadores, estudantes universitários, professores e alunos do 3º ciclo.

"Tentámos ir mais além da identificação das representações dominantes. Sabemos que são estereotipadas, existem imensos estudos que o mostram. Em vez de fazermos mais um, assumimo-los como ponto de partida e fomos antes tentar explorar a ideologia que lhes subjaz e o modo como através desta se naturalizam as relações de poder", explica a investigadora.

Como se conta o mundo então? "Garantindo a presença da Europa no seu centro." "Este eurocentrismo exprime uma pretensão universalizante, através da qual o modelo de desenvolvimento europeu ocidental é adoptado como padrão para avaliar todas as outras sociedades", explica Marta Araújo.

Clara Serrano, investigadora dos Centros de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, também tem andado à volta dos manuais de História do ensino básico e à semelhança de Marta Araújo constatou que nestes livros " a história universal é estruturada e apresentada a partir de uma perspectiva marcadamente eurocentrista". "A história dos outros continentes é muito pouco leccionada - e, quando é, é-o como efeito secundário do conhecimento de actividades de descobrimento e colonização protagonizadas por povos europeus", explicita. Não é um exclusivo: "É curioso verificar que os próprios manuais dos países não europeus não conseguiram escapar a esta linha europeísta."

Para Marta Araújo, o eurocentrismo como ideologia ganha eficácia "através da despolitização". Por exemplo, a guerra colonial tende a ser descrita "não como uma guerra de libertação, mas sim como uma guerra de guerrilha sem um propósito". Há livros em que as únicas imagens reproduzidas são a de soldados portugueses mortos, uma forma, segundo a investigadora, de reforçar uma narrativa recorrente. "Também a encontramos, por exemplo, nos capítulos da Reconquista da Península Ibérica. E a imagem que se faz passar é que nós, portugueses, fomos forçados a sermos violentos, enquanto eles, sejam angolanos ou mouros, são naturalmente violentos e bárbaros."

É o que está patente nestes trechos apresentados em manuais do 7º e 9º ano e que são reproduzidos pela investigadora num artigo publicado na revista Estudos de Sociologia.

Sobre a Reconquista: "No século VIII, os Cristãos viram a sua vida quotidiana - em si bastante instável - ameaçada pela chegada dos Muçulmanos. Em consequência os Cristãos estabeleceram contacto com os Cruzados de outros reinos Cristãos Europeus com os quais reuniram esforços para recuperaram os territórios perdidos(...)."

Sobre a guerra colonial: "Um sentimento generalizado de medo entre os colonos levou-os a matar muitos indígenas enquanto outros fugiram, indo juntar-se aos guerrilheiros. Posteriormente, tribos do Norte de Angola assassinaram centenas de colonos."

"Há sempre um jogo que naturaliza a nossa violência e que esvazia o lado político da luta deles", frisa Marta Araújo.

"Ranking dos colonialismos"

Num manual do 8º ano explica-se que os portugueses foram para África, porque queriam fazer comércio. O modo como se narra o que aconteceu então e depois acaba por dar corpo a uma espécie de "ranking dos colonialismos". "O racismo é sempre tido como um fenómeno circunscrito e associado aos impérios francês e britânico." As atrocidades ficam sobretudo por conta dos espanhóis. E a nós atribuem-nos uma espécie de "colonialismo suave", uma leitura que, segundo Marta Araújo, voltou a ganhar força nos últimos dez anos.

Com a ênfase europeia no multiculturalismo, Portugal volta a apresentar-se como tendo um papel pioneiro, ressuscitando "o discurso lusotropicalista que foi apropriado pelo Estado Novo" - essa ideia de que os portugueses sempre tiveram melhor capacidade de adaptação a outros povos e culturas. "Nunca se discute o fenómeno do racismo. Ou é tido como um fenómeno circunscrito a outros, ou como uma atitude individual, ou como ligado a situações extremas, como o nazismo", frisa.

Não por acaso, acrescenta, na maioria dos manuais não existe uma única referência aos ciganos: "É uma parte da população que desapareceu." Os manuais escolares, sendo um dos principais recursos utilizados nas salas de aulas, "dizem bastante sobre o modo como se ensina a História nas escolas", afirma Clara Serrano.

Existe uma "simplificação" que é potenciada pela extensão dos programas em vigor e a carga horária reduzida atribuída à disciplina. E esta simplificação contribui para o êxito de um propósito, adverte: "Não nos podemos esquecer que os manuais são transmissores de valores que a instituição escolar e, em última análise, o poder instituído pretendem transmitir. Por isso, a escolha da linguagem, do estilo, a selecção dos assuntos e dos textos, a organização e hierarquização dos conteúdos não será de todo inocente."

quinta-feira, 24 de março de 2011

Outra referência dos Homens da Luta

Eurovision 1977 - Os Amigos - Portugal no coração



Comentário: 1977 - em parte o produto que os Homens da Luta agora homenageiam/parodiam com carinho, troça, ironia, duplos sentidos dentro de duplos sentidos. Podemos talvez comparar os dois vídeos. (aula de 23/3)

quarta-feira, 16 de março de 2011

poesia popularíssima

seguem aqui as minhas tentativas... optei por não dar muita importância ao número das sílabas, isso, enfim, pode-se facilmente compensar na leitura a voz alta.

miradouro

sentados ao lado do adamastor
vemos o monstro nos enfrentar
saudação pedernal do redentor*
para nós e o ponte salazar.

* monumento mais feio da zona

 
antes do rendez-vous

a aula quase está a terminar
falta só um quarto de hora
contudo não paro de esperar
que acabe, que possa ir embora.

rendez-vous?

logo, às cinco e trinta
– o cinzeiro já está cheio –
toda esperança é extinta
ela/ele simplesmente não veio.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Podem procurar no Youtube trechos de narração oral

Talvez buscar com palavras-chave, como "contador de histórias", "Contos orais", etc.

Aqui vai uma amostra:
II Encontro Internacional de Narração Oral (Almada)

domingo, 13 de março de 2011

Trabalhos de casa

Alguns alunos perguntam se podem fazer trabalhos de casa ou de aula antigos. Claro que sim. Até podem inventá-los - a ideia é trabalharem, logo treinarem.
Quando eu disse que "a aula é o espaço do erro" referia-me precisamente (em parte) a isso.

Aqui fica então uma proposta de exercício. Analisar e comentar o seguinte poema de Adília Lopes:

Autobiografia Sumária

Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Aviso aos alunos da cadeira

Meus caros, como sabem a aula/disciplina é teórico-prática, ou seja (como já sublinhei) o vosso investimento é crucial para... o vosso sucesso.
Tenho dado exemplos: a aula é o apeadeiro no percurso, etc., o programa é um menu de escolhas (um cardápio) onde vão buscar assuntos que vos interessem, têm à disposição um bufete de textos primeiros (os textos literários) e auxiliares de análise e leitura.
Lembro que os artigos apresentados em aula e/ou aqui neste sítio são de leitura obrigatória.

Preciso também que se adiantem com propostas de apresentação em aula.

Em relação à dupla leitura (ou dupla ideologia): geralmente a pessoa ingénua pergunta o que "o poema quer dizer". Ora o poema não "quer dizer", o poema diz. Mas por acaso podemos aplicar esta questão - só que invertendo-a - a textos e discursos: textos que queriam dizer uma coisa mas dizem (também) outra. Isto é flagrante sobretudo quando o emissor não domina o instrumento que usa para comunicar.

Um exemplo (apresentado em aula): os pires e as chávenas deixados, sujos, na esplanada da nossa faculdade. Por que motivo os alunos que vão buscar o que consomem (é self-service) não podem depois fazer o mesmo simples e prático gesto de volta? Uma resposta em aula: "Ah, eu estou a pagar um serviço." Não é claro que assim seja. E, se queremos serviço completo, talvez tenhamos de pagar mais, porque para a limpeza das mesas ser eficaz (enquanto as empregadas estão na cozinha, tiram as bicas, estão na caixa, irem ainda de 3 em 3 minutos limpar as mesas)talvez seja necessário contratar mais pessoal, logo encarecer os produtos. A minha leitura é distinta, e menos simpática para nós, docentes e discentes da bela FCSH. (Ver exemplo 3).

Outro exemplo: no discurso directo, num romance, muitas vezes o locutor pensa que está a dizer uma coisa mas está a dizer outra. (É assim que alguns detectives descobrem coisas.)

Ainda outro exemplo: o "Eu não sou de intrigas, mas". Há aqui uma bifurcação clara. 1) Eu não sou de intrigas; 2) mas (sim, sou, e a prova mesma é que neste preciso momento vou intrigar).

Conto convosco. Sei que o que vos motiva é aprender e não apenas ter a nota.
Asseguro que o que me motiva é que se sintam motivados e, já que estamos com a mão nos produtos perecíveis, aprendam algo com a cadeira.
Um comovido obrigado.

terça-feira, 8 de março de 2011

Faz favor, menina

(Público, 8/3: Maria José Casanova, I.Educ. Univ. Minho)

[Nota do prof: Este artigo chama a atenção para o aspecto de a linguagem nunca ser inocente. Gostava que tentassem, como exercício, identificar os pontos principais do texto.]

Numa perspectiva de compreensão sociológica da realidade social, devo confessar que não gosto de "Dias de". Os "Dias de" remetem para a evidência de um tratamento socialmente hierarquizado, discriminatório, de grupos considerados minoritários porque socialmente destituídos de diferentes tipos e montantes de poder (seja o dia da mulher, do deficiente, do cigano, etc.). Remetem portanto para categorias sociais normalmente (e normativamente) invisibilizadas nas relações do quotidiano pela ausência de poder socialmente considerado: os não-cidadãos ou os súbditos (de sub-dito). A sociedade fica assim de consciência tranquila porque, numa atitude paternalista, por um dia outorga atenção a categorias sociais estruturalmente subalternizadas, diminuídas no seu estatuto de cidadãs ou cidadãos.

É o que acontece com o "Dia Internacional da Mulher", cuja "comemoração" ocorre hoje. Sendo as mulheres mais de 50% da população mundial, desempenhando, tal como os homens, um papel fundamental na reprodução social das sociedades, na estruturação familiar e no mercado de trabalho, considerá-las um grupo minoritário (mais uma vez: pela ausência de poder socialmente considerado) significa a assunção da sua subalternidade num mundo construído e ordenado segundo categorias sociais masculinas.

Incontornavelmente mais importante do que qualquer institucionalização de "Dias de", é institucionalizar práticas democráticas, construtoras de relações de sociabilidade, familiares e de trabalho não-hierarquizadas; do tratamento de cada um de acordo com a dignidade que todo o ser humano, por princípio, merece.

Um exemplo desta ausência de institucionalização de práticas democráticas é o tratamento linguístico de que uma parte das mulheres é estruturalmente alvo por parte da sociedade (neste caso, portuguesa) e que consiste no tratamento de "menina" com que são frequentemente "presenteadas" nos mais diversos contextos de interacção social. Normalmente recorro à ironia em situações desta natureza (que bom/que interessante..., ainda sou considerada menina...), que não raras vezes faz os meus interlocutores ou interlocutoras olharem-me entre a perplexidade e a estranheza...

Esta forma de linguagem remete a mulher para um estatuto de menoridade, retirando-lhe a adultez e outorgando-lhe um estado permanente de infantilidade ao qual se associa a necessidade de serem constantemente cuidadas e agidas pelo género masculino.

Não deixa de ser interessante neste processo de construção social a adesão das próprias mulheres a esta forma de dominação através da atribuição de um sentido positivo à expressão. O tratamento de "menina" aparece associado não a uma subalternidade de género, perpetuando relações de dominação, mas à assunção da sua juvenilidade. Ser tratada por "menina" significa ser percepcionada como pertencendo ainda à categoria social de juventude, independentemente de esse tratamento ser outorgado a uma mulher de 20, 30 ou 50 anos..., perpetuando assim as mulheres formas de dominação masculina que aparecem naturalizadas (incorporadas por homens e mulheres) porque socialmente instituídas.

Esta espécie de "violência simbólica" sobre as mulheres é eficaz dada precisamente a adesão das "dominadas" a este processo de dominação (reconhecimento da validade de) e do desconhecimento das relações de poder que estão na sua base. À semelhança de Pierre Bourdieu (1999), considero que a dominação masculina se perpetua porque as mulheres (e os homens) incorporam, "sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e avaliação, as estruturas históricas da ordem masculina", recorrendo, "para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produtos da dominação". Mas considero também que, sendo as mulheres agentes dotados de capacidade reflexiva sobre os contextos e os processos de interacção, são capazes de construir práticas contra-hegemónicas de desnaturalização destas (e de outras) assimetrias homem-mulher.

No caso em apreço, basta pensar que o mesmo tratamento não é outorgado ao género masculino, a não ser em situações que ocorrem na esfera doméstica, em que a expressão "menino" aparece associada a um tratamento de deferência da empregada em relação ao filho do empregador ou empregadora, o mesmo acontecendo, neste contexto, com o género feminino.

A que formas de rebelião social não assistiríamos se esta forma de linguagem fosse outorgada ao género masculino? Não um tratamento jocoso ou circunstancial, mas um tratamento perene, naturalizado. Pois é de uma rebelião social (mesmo que silenciosa) que necessitamos, protagonizada pelas mulheres nas suas relações do quotidiano: dizer não a esta e outras formas de tratamento subalternizado (materializado através do comportamento, da linguagem verbal ou da linguagem corporal) exigindo dignidade e paridade nos mais diversos contextos e processos de interacção social.

É importante não esquecer que todas as relações sociais são construídas enquanto relações de poder. E o poder exercido sobre o outro será tanto maior ou menor em função do grau de consciencialização acerca da existência do exercício desse poder e na medida em que nos percepcionamos (ou não) como mais dependentes desse outro do que esse outro de nós.

É através das relações do quotidiano que estas (e outras) formas de subalternidade estrutural se perpetuam, já que as mentalidades se constituem numa das formas mais consistentes de dominação estrutural socialmente existentes.

Mas uma vez que o Dia Internacional da Mulher existe e está aí, por que não aproveitá-lo para iniciar este processo de rebelião social dizendo "não" a formas subalternas (e/ou delegadas) de exercício da cidadania? Instituto de Educação da Universidade do Minho ( mjcasanova@ie.uminho.pt )

quinta-feira, 3 de março de 2011

Uma modesta proposta

"Uma modesta proposta", panfleto-conto-ensaio de Jonathan Swift, é considerado por alguns o texto pioneiro do humor negro moderno. Aqui em tradução da prof. Helena Barbas.
A ler e - por favor - a comentar. Acredito que se vão divertir, e que o texto vos vai fazer pensar, meus caros.

Um poema escrito com a vida e uma câmara de filmar

I, Alexandre Borges, 3/3/11

Shi. É assim que se diz e escreve "poesia" em coreano. Shi, uma palavra ínfima e una, atómica, aparentemente feminina, quase uma nota musical - como a poesia. E "Shi" é precisamente a forma mais poética de olhar a realidade dos cinemas nacionais pós-Óscares: começou a ressaca.

As distribuidoras saberão as linhas com que se cosem, mas é difícil perceber a enxurrada de estreias de filmes nomeados nos 15 dias que antecedem a cerimónia da Academia e que nenhuma pessoa normal consegue acompanhar, para depois desaguar no deserto das semanas seguintes. Veja-se o cartaz de hoje: sete novidades e tão pouco que interesse.

Esse pouco que importa é "Shi", filme que não esteve nos Óscares, mas que nos leva a outra questão: à estranha categoria do melhor filme em língua estrangeira. Esse prémio de consolação sempre soube a gesto paternalista de uma academia que deveria ter a coragem de reduzir os Óscares aos filmes de língua inglesa ou abrir verdadeiramente a competição ao cinema mundial.

No entanto, em alguns anos excepcionais, o apertado filtro dedicado ao resto do mundo consegue o milagre de reunir uma amostra realmente boa da produção mundial. No ano passado, por exemplo, encontrávamos "Um Profeta", "O Laço Branco", "O Segredos dos Seus Olhos" e "A Teta Assustada", um cabaz de raro luxo. Já em 2011, custa perceber por que não cabem "Lola", "Cela 211", "Cópia Certificada" ou "Poesia" num leque que albergou, por exemplo, "Biutiful".

De conversa em conversa em modo cerejas, umas atrás das outras, voltamos a "Shi". É que vê-se "Poesia" e pensa-se que talvez fosse isto que Iñárritu queria fazer de "Biutiful" e não conseguiu: conjugar múltiplas dimensões numa personagem e conseguir que todas se completem numa só história. É um projecto difícil, certamente ao alcance de poucos e não se pode crucificar ninguém por tentar, mas Lee Chang-dong não se limita a tentar; concretiza.

"Poesia" tem múltiplos caminhos percorridos por uma só mulher: uma senhora sexagenária que se veste de modo elegante, mas de posição social humilde. Para ganhar a vida, trabalha para um velho homem a quem dá banho e limpa a casa; para satisfazer outras ambições, frequenta um curso de poesia onde tem a missão de entregar um poema, o primeiro da sua vida, até à última aula. Mas há vida para além do trabalho e dos sonhos: há um corpo que acusa os primeiros sintomas da doença de Alzheimer e há o plano da família onde se vê confrontada com a descoberta de que o neto e os amigos violaram repetidamente uma menina que acaba de se matar.

Como se transformam tantas histórias numa só história? Com a mestria de um grande contador delas. O Alzheimer vai, lentamente, desvincular esta mulher da realidade, uma realidade a que precisa de fugir, uma realidade medonha a que se vai religar num plano superior de beleza no poema que tem de escrever.

Prémio de melhor argumento no Festival de Cannes, "Poesia" parece vir dum tempo que pouco tem a ver com a passadeira vermelha dos Óscares. Nada o impede de lá estar, mas, em rigor, não é difícil ver que são dois mundos que não se compreendem. Um fala do que está à vista; o outro do que não se vê.

Lee Chang-dong perguntou, a propósito deste filme, que significado teria escrever poesia quando as pessoas já não a lêem. E que significaria fazer filmes quando os filmes estão a morrer. A resposta é luxuosa e eloquente: são estas duas horas e vinte de beleza e cicatrizes, num cinema perto de si. Um poema da condição humana escrito com palavras tão improváveis como karaoke, badmínton ou viagra. Crítico de cinema